CRÔNICA ANUNCIADA

por CorujaJF
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Reza a lenda que lulas, moluscos marinhos , quando sobem à tona, adoram zaragalhada, mas fogem do zangarilho. Soltam tintas nanquim de prazer ou de medo pelas extremidades, esbravejando para se defenderem da turba que as caçam por todos os lados.

Acordei com isto na cabeça.

Lembro bem quando pescadores jogavam o zangarilho para dar aquele espaço de um metro do fundo para a armadilha funcionar, batendo no solo marinho e puxando, medindo na intuição. Não é fácil. Confesso que nunca consegui pescar uma que fosse. Sou muito afeto a lulas somente para cozinhá-las na pressão, com leite de coco, tomates, cebolas, azeitonas na medida e no tempo certinho, com arroz e salada mista. Sem cachaça, só cervejas ou vinhos. Uma taça de vinho branco para temperar também vai bem ... hummm!

Em Ilhabela, no litoral norte de São Paulo, é bem comum, lá no canal de São Sebastião.

Porém, não se pode cozinhar lulas por muito tempo, porque senão viram borrachas duras e resistentes e depois fica difícil de comê-las com a pior ou a melhor das cachaças e haja dentes, pois se transformam em chicletes que amedrontam e traumatizam os que não conhecem a bela iguaria, quando bem feita.

Não adianta condená-las, em duas instâncias ou patamares, nas supra ditas armadilhas, pois são bem ariscas e fogem antes de adentrarem ao convés, “cuspindo” nanquins nas pessoas antes de voltarem para as águas. Não tem este negócio de segunda chance ou segundo andar, sobrado na casa do zangarilho. O negócio é pegar no flagra, na hora e colocar dentro do balde, rapidinho.

Só sei dizer que se for solta, a decepção é geral e sempre quando penso nisto , vêm muitos 11 urubus negros de togas voando rodando no alto,  na minha mente,  girando acima e ao redor de um mar azul, com sol amarelo no céu anil e ao fundo aquelas matas verdes de Ilhabela e de São Sebastião, de um lado ao outro do canal ... Não olho nem para baixo , com medo de ver sangue ou botinas pretas marchando para caçá-las, novamente. Pesadelo acordado! Cruzcredospai!

Só sei dizer que cozinhar é uma boa paixão e lulas mortas e cozidas, no ponto certo, são deliciosas, mas deve-se saber fazer tudo do início ao final. Depois da refeição a pessoa consegue dormir farto e até sonhar, sem pesadelo algum, satisfeito de ter sido testemunha de tudo, dos trabalhos e participado do banquete... Dá um sono tranquilo ...

Certa feita, depois de horas de luta para pescá-las, sem conseguir nada de novo, mas cozinhando bastante para os amigos, dormi a noite inteira e vi, num determinado momento,  numa imagem no sono, clara e luminosa: prendi uma lula. Fiquei bem feliz. Um sonho bem brasileiro, não só de caiçara.  Pois pescar é um grande nosso esporte e pouca gente sabe disto. E como todo sonho tem a sua parte psicodélica, um pouco surreal, ouvi alguém dizer: esta praga não gosta de polvo, mas tem um determinado polvo que adora lula...  Só sei que acordei ouvindo o galo cantar, sem saber onde, ao longe, meio sonolento, ainda sonhando e falei: precisamos parar de cozinhar o galo com água gelada... Não entendi bem tal sonolência, visões e conclusões, mas talvez porque achava que ainda vivia meus tempos de criança,  desaprendendo tudo que me ensinaram  depois que amadureci ...  

Abraços do CORUJAJF

João Carlos de Souza Lima Figueiredo

Juiz de Fora, 1º de maio de 2017